quinta-feira, 20 de abril de 2017

A colina

     Há dias não via a luz do sol. Nem sequer para fora de casa havia ousado por seus pés. As obrigações deixara de lado, não eram tão prioritárias agora. Já não faziam mais sentido. Tudo era como um trilho de trem que seguia por um campo vazio, interminável, onde a grama queimada predominava a paisagem, ou, melhor dizendo, onde a grama queimada era a única coisa a ser percebida pelos seus olhos além do céu completamente branco e indiferente. E por mais que enxergasse, não via. Não havia vida para ver. Tudo era uma grande repetição da mesma imagem, dos mesmos trilhos. A vida de Vicent, que agora em seu imaginário tomava a figura de um trem, parecia correr em círculos pelo mesmo lugar. Mas ao mesmo tempo, nunca sentia a curva, o trem nunca parecia fazer qualquer outro movimento a não ser seu cansado impulso seguindo os trilhos. O caminho era reto, liso, sem movimento, sem balanço. E o trem seguia sempre em sua pesarosa velocidade, que uma vez ou outra se tornava mais lento ou mais veloz, mas nunca o suficiente para causar qualquer movimento.
     Olhava para suas mãos, e de tão desidratado percebia sua pele seca, sem brilho. Seus dedos se esticavam com algum esforço, causando uma dor nas juntas devido à falta de alimentação e ao fato de estar a maior parte de seu tempo dormindo. Era incontrolável o impulso, sentia-se sonolento durante todo o tempo, de tal modo que sentia dores em sua cabeça constantemente. Olhava-se no espelho e via uma imagem pálida, quase fantasmagórica, com enormes manchas escuras ao redor de seus olhos. Sua visão, ainda limitada pelo pouco tempo em que permanecia acordado, ia da cabeça aos pés, procurando qualquer vestígio de sentimento, sem encontrar.
     Caminhou até a janela e diante dela parou, olhou para a rua. Era inverno, e as árvores na frente de sua casa se retorciam sem folhas para todos os lados. Não havia movimento algum, o que já era costumeiro para aqueles lados da pequena cidade que quase não eram habitados. O lugar, pela característica reclusão, foi sua escolha na hora de se mudar. Sentia-se confortável longe dos barulhos dos motores e dos falatórios das grandes áreas urbanas. A ideia de não precisar sequer saber o rosto das pessoas ao seu redor o agradava. Mas agora, tudo que via era solidão. O vento gelado que vez ou outra passava balançava de leve alguns galhos aqui e ali por dois ou três segundos. Depois, tudo permanecia imóvel. Voltava seus olhos para o céu: era um céu genuinamente cinza. Não havia predominância de branco, nem estavam as nuvens carregadas, o céu era puramente cinza. Era um céu apático que nem parecia notar sua existência, diferente daqueles céus de outrora dos quais agora se lembrava, que se estendiam em cores, formas e curvas diante dele, como se apresentassem um espetáculo. Mas agora, o céu passava diante dele sem olhar em seus olhos, com seu rosto voltado para a frente, sem a menor vontade de exibir aquelas cores. Nem mesmo as luzes da rua eram significantes. Estejam elas ligadas ou desligadas, a claridade, que era comedida, continuava sempre no mesmo tom.
     O chá estava morno e amargo, mas tomava em goles secos assim mesmo. Passava pela sua garganta e era como se esticasse a pele desidratada de dentro dela, deixando uma leve sensação de estar arranhando. No estômago, batia desconfortavelmente ao chegar, mas logo se acomodava de imediato. Deixou a xícara sobre o criado mudo e deitou-se novamente na cama. Encolheu-se com o rosto entre os braços, tentando sentir novamente o calor do abraço de quem já não estava mais ali. Tentava lembrar de como era ter ao seu redor a sensação de estar protegido, acolhido. Mas tudo que sentia era o frio sobre seu corpo pálido. Se questionava se isso era tudo que havia para viver, realmente. Se depois de todos os sonhos feitos pelos dois, a solidão era tudo o que lhe restava. Se arrependia, mas não sabia de exato do quê. Mas estava arrependido. Talvez de não ter sido tão presente em seus momentos, de ter deixado tudo para depois, das conversas com as quais não se empolgou quando o outro tentava descobrir suas opiniões e interesses, das vezes que se isolava e deixava de lado as carícias porque sentia-se estranho. Mas agora, daria tudo de si para poder consertar tudo antes de qualquer coisa. Era uma troca impossível, mas ele só queria sentir que foi o suficiente enquanto podia.
    Abriu a porta e foi em direção a sala, parou de frente à grande janela principal e voltou seu olhar para o horizonte, onde uma colina se precipitava. Diante daquele cenário invernal, era o único lugar onde ainda se podia enxergar alguma cor no verde enfraquecido das árvores. Olhou lenta e cuidadosamente cada detalhe, como se tentasse extrair daquela pintura alguma essência de vida. Quando atingiu o topo, o sangue correu mais forte em suas veias. Pôde ver claramente no vapor que se emendava do céu a imagem de uma dama com um longo vestido branco, de braços abertos. Assustado, esfregou seus olhos e tornou a olhar, desta vez apertando sua vista para enxergar melhor, já que havia deixado seus óculos em cima da cama. E lá estava a mesma imagem. Correu para pegar seus óculos, mas não se lembrava onde havia deixado. Não sabia se era devido ao susto, mas sentia mais frio agora, então foi até o armário buscar um agasalho. Passou algum tempo procurando seus óculos, até que o cansaço e a desistência o tomaram para si e ele resolveu que deitaria no tapete ao lado de sua cama.
    Seus olhos se abriam pesarosamente. À sua frente, no chão, o par de óculos. Estranhou eles estarem ali, mas logo abstraiu o fato. Foi em direção à janela da sala novamente, mas para sua surpresa já havia escurecido e não conseguia mais enxergar o topo da colina. Voltou para o seu quarto, pronto para adormecer mais uma vez. Sentou-se à pequena mesa que havia ao lado da porta e buscou cabisbaixo a caixa de remédios e o copo de água que sempre deixava ali. O médico havia lhe recomendado tomar um comprimido daquele por dia para que se sentisse melhor. Desde a partida de Hector, não se sentia apto para seguir com suas rotinas. Não havia mais ânimo para nenhuma atividade. Meses já haviam se passado, e quase todas as economias que juntaram para comprar um novo imóvel se haviam esgotado em medicamentos e contas. Mas Vicent não conseguia alcançar desta vez. Levantou-se da cadeira e procurou, sem encontrar, a caixa de remédios. Abriu as gavetas, ergueu o colchão, mas não estava em lugar nenhum. Foi até a sala procurar, mas chegando lá, seus olhos não se desviavam da janela. Por alguns minutos, com tal estranheza que nem mesmo entendia, fitou a paisagem escura. Sentiu uma inquietação percorrer seu corpo e buscou as chaves da porta da frente.
     Andava lentamente pela rua porque o medo ainda o perturbava. Há muito tempo não andava para fora de casa e as ruas pareciam intimidar. Uma vez ou outra, em seu caminho, algumas pessoas passavam, o que lhe causava alguma angústia, mas elas nem mesmo o notavam. Seguiam com seus olhares fixos, suas cabeças baixas. Seus passos então se tornavam mais nervosos e apressados. Quando alcançou o pé da colina, parou por um momento para procurar o seu topo, mas não podia ver muito já que ali não havia iluminação elétrica. Decidiu subir. Seus pés cansados e seus ossos doloridos e maltratados seguiam com dificuldade diante da elevação da colina. Vez ou outra parava e sentava-se um pouco para respirar quando seus pulmões pareciam querer rasgar. Com muito esforço, alguns ferimentos de quedas e diversas dores, alcançou o topo da colina. Pôs-se totalmente de pé e olhou o horizonte dali. Podia ver sua casa, além de muitos outros lugares que nunca havia sequer conhecido.Virou-se e pôde ver o outro lado da cidade depois da colina. Mas seus olhos desesperados e ansiosos não podiam ver o que tanto buscava. Caiu, vencido pelo cansaço, e baixou sua cabeça em uma expressão vazia. Tirou seus óculos e, sem que nem percebesse, adormeceu.
     Ao abrir seus olhos, percebeu uma mancha clara diante de si, e em um susto ergueu a cabeça para ver o que era. Não conseguia encontrar os óculos, e, em desespero, olhando para a nuvem amorfa diante dele, levantou-se num salto e começou a andar para trás enquanto fitava aquela forma indistinta. Desta vez, não lhe parecia uma donzela em um vestido, mas havia sem dúvidas um aspecto humanoide. Sem ver o chão abaixo de si, tropeçou numa elevação de terra, que o fez cair colina abaixo. Enquanto debatia-se pela íngreme ladeira, Vicent abriu um sorriso.
Depois disso, tudo era branco.

-     
     -Finalmente te encontrei de novo.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Dois polos

Eu sou a sombra a te seguir
Que só não vês quando te cobre
Eu sou a nuvem negra se aproximando
Que brada, marcha e não se dispersa
Sou noite sem luar
O sol que não nasce
A estrela que se apaga
Eu sou a pantera que se guarda na penumbra
Mostrando os dentes, esperando,
Sou o lobo que se esconde na caverna,
Ou me lideras, ou tenho tua carne,
Sou tormenta inevitável
Diante de tua canoa
Sou deserto severo
Sem oásis, sem civilização,
Sou a terra que te engole
E quanto mais te mexes, mais te sufoco,
Sou a tempestade de neve,
Congelando os teus amores,
Sou o limo à beira do penhasco,
A serpente que avisa antes do bote,
A viúva-negra que desce lentamente da teia,
Sou a árvore a crescer, mais e mais,
E que derruba tudo à sua frente,
Mas sou também mar profundo
Que, por trás do vulcão enfurecido,
Carrega as dores do mundo,
Sou a chuva densa
Que em si mesma se afoga,
Sou o vento gelado
Que se quebra ao contra a parede,
Sou o peso do ontem
Que me arrasta para longe de tudo,
Sou o eremita a se sentir sozinho
Por não ter escolhido a própria sina,
Sou, portanto, os dois pesos dessa odiosa medida.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Teu

Ao ver-te, meu bem, enche-se de sonho o meu olhar
Pois ao ver-te, contempla minha mente a mais bela luz
Que é essa que de ti ilumina, que é essa que somente eu posso ver!
E meu peito, a saltar, como que empurrando meu corpo a sopapos
Para te ter junto a mim, se alegra e espalha minha pulsação pelo todo,
No teu abraço, lar de minha alegria, és um com o meu sonhar,
És um com o meu amor, pois é teu o meu amor.

Em teus olhos, mares negros a transbordar doçura,

Vejo a mim mesmo, e, vendo a mim mesmo, vejo a ti,
Pois sendo eu completamente teu, que mais teria em meu próprio olhar
Não sendo esses teus olhos, que de tantos mistérios me lançam a pensar?
Penso pois por ti trilho os caminhos mais complexos,
Escrevo os versos mais íntimos, que se lançam de mim como meu próprio coração
A se lançar em teus braços, a querer entrar em teu peito e fazer morada
Pois somente no teu calor o gelo que me recobre derrete,
Somente em teu solo floresço firme e vívido,
Somente do teu céu chovo, a encher de vida teu luar,
Que, crescente, me recobre por inteiro,
Me acolhe e me lembra porque ao teu lado escolhi estar,

E quando tua doce voz me indagar, com tom de encantamento

"O que queres, meu senhor?"
A resposta está em teus olhos, em tua alma, em teu abraço,
Porque de ti, que a tudo reluz em minha vida,
Não quero menos que o teu inteiro,
Teu sol e tua lua, teu céu e tuas estrelas,
Tua alma e teu corpo, a dançar com o meu,
Tornando-se os dois um só,
Para que assim possa eu ver
Que és tão meu quanto sou teu.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Meu querido Chevalier

"Meu querido Chevalier, a noite está linda. Queria que pudesses ver a lua cheia como a vejo daqui. Onde quer que estejas, será que a vês tão bela quanto eu? Ah, como me agrada o luar brando a tocar em minha pele!
Pele! Lembro-me dos arrepios que me causavas quando dizias a meu ouvido "Somos só eu e tu esta noite, Claire". Ah, como queria ouvir de tua boca de novo essas palavras! Mas andas tão calado... Espero que não tenha sido por causa de nossa última briga. Amo-te, meu querido, mas por favor, entende, não sou eu a mulher que se abranda diante dos homens. Sei de meu poder, e teu comportamento recente tem sido a desordem de meus nervos.
Nervos! Uma pilha deles! Ah, desgraçado! Com semblante tão lindo, mas tão desgraçado! Como pudesses, Chevalier, ser capaz de me largar no meio da noite, achando que eu nunca descobriria? Dizia não estar com ânimo para deitar comigo, que o trabalho o esgotava, mas eu espiava, enquanto fingias dormir, o que fazias comigo. E lá estava eu, escondida, a te perseguir no meio da madrugada, para descobrir que estavas em meio àquelas mulheres, cujas bocas, ao que tu debochavas de minha lealdade, riam-se em vermelho sangue!
Sangue! Parecia jorrar-me sangue da garganta quando a vontade de gritar me rasgava por dentro. Mas não podias descobrir que eu estava ali. E me diz, querido, foram proveitosas essas noites? Pergunto pois eu mesma não me atrevia a ficar nem mais um segundo ali. Corria de volta para meu aposento e gastava o resto da noite em prantos. No dia seguinte, querido, lembra-te de me ouvir dizer que não me sentia bem e por isso precisava me recolher para repousar? Tua consciência não chegou a pesar por um minuto sequer? Pergunto pois sempre foste um homem forte, mesmo a consciência mais pesada não seria problema para teus rígidos músculos.
Músculos! Ah, como me enlouquecia quando os sentia, naquelas noites acaloradas que costumávamos ter antes de tudo, lembra-te? Meu toque era todo teu, e eu, entregue completamente aos teus encantos. Éramos como um quadro -não, uma escultura!- daquelas que eternizam um grande amor, como Psiquê e Eros. Ah, como me envolveram os teus braços naqueles primeiros dias! Observava pela tua janela apenas por mera curiosidade. Chegaste a pensar que eras louco quando vislumbravas a mim, e logo em seguida eu desaparecia, não é? E vieste atrás de mim, como quem persegue uma visão. Fomos felizes juntos, até voltares contra mim o gume da mentira. E quando me seguraste pelo braço, lembro-me que a primeira coisa em que reparei fora teu maxilar. Tão esculpido! Como poderia ser tão detalhadamente esculpido, como uma própria obra de arte, um simples osso, simples parte de teu esqueleto?
Ossos! Duros, frios, mas que me envolviam, de certa forma. Teu olhar me petrificava. Não pude resistir, Chevalier. Eu já estava mesmerizada em teus encantos. Ah, como o amei. Ah, como o amo! Mas ainda assim, com todo meu amor, com todos meus cuidados, foste atrás de outras! Como podes ser tão ingrato? E como posso eu ser tão tola de ainda te amar, ainda vislumbrar teu rosto tão belo, que escancara essa enorme traição? Como posso eu ainda sequer querer de ti algo que não posso ter? É o que pensarias, provavelmente. Mas, querido Chevalier, eu não sou o tipo de pessoa que espera as brisas passarem e arrastarem consigo as flores da primavera até que o inverno seja frio e seco. Eu sempre consigo o que eu quero, não era o que me dizias quando cedias aos meus charmes? Não dizias que eu tinha com um só sorriso disfarçado a chave do teu coração?...
Pele, nervos, sangue, músculos, ossos... Ah! Aqui está! O coração! Escondeste muito bem, querido, devo admitir. Teus ossos eram deveras rígidos, tive dificuldade de rompê-los. Mas aqui está, em minhas mãos, tudo que eu queria de ti. Teu coração. Ele não pulsa mais? Não dizias que ele se acelerava ao me ver? Creio que não tenha mais tanta utilidade, sendo assim. É uma pena, querido, desperdiçar o meu tempo com isso. Mas ao menos o teu coração sempre foi sincero às próprias vontades e nunca precisou sustentar mentiras. Ao menos o teu coração terá um descanso apropriado junto ao da tua amada que havia te roubado de mim! Quanto a todo o resto, deixo exposto, afinal, o doavas a qualquer outrem que não fosse a mim, não é? Que os abutres façam bom proveito de tua carne dura e frígida, então."

segunda-feira, 13 de março de 2017

Zephyrus

Guia-me
E me leva por onde tua brisa for
Me leva leve,
Me venta e me inventa,
Reinventa o meu viver
E envivece minha alma com teu sopro
Faz florescer o pensamento meu,
Leva para longe o que me prende os pés,
Sopra gentil em meus ouvidos as respostas
Quando confuso estiver
E quando a alegria me visitar,
Que dance comigo ao luar,
Sopra teus cuidados ao teu filho,
Acaricia os meus cabelos
Como faria a Primavera
Após esperá-la, deitado em sua terra
Durante o longo e frio inverno,
Sopra a chama que acende
E ascende a alma minha
A leva aos céus, quero tocar as nuvens,
Gentilmente abraçá-las até que esvaeçam,
Atravessá-las até que seja uma delas
E descobrir em cada sopro dentro de mim
Os jardins que nem eu mesmo conhecia,
Os céus que diante de mim se estendem
Somente na tua presença
Sopra o meu caminho pelo Oeste
E cobre de folhas verdes o meu corpo,
Enfeita com flores os meus cabelos
E mesmo na chuva e na tempestade,
Quando frio é o vento
Hei de me erguer em teu nome
E oferecer a ti as honrarias que de mim partem,
A gratidão, doce fruto,
Que ofereço aos pés da grande árvore
Será singelo símbolo de minha afeição
E falem as línguas, julguem os olhares,
Tendo em mim a tua presença,
Tendo em mim a luz da Lua
E tendo em mim a energia
Seguirei pelos ventos
Regido pela primavera
Pois eu, o filho da Lua,
Sou a mão de meu próprio destino.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Caminho


Ah, amor meu!
A quem meus olhos são devotos
Em cada singelo segundo,
Como bosques verdejantes em dia de chuva,
Que escorrem, tentando te alcançar,
Como tenta no céu a Lua encontrar o Sol,
Soubesses tu das noites escuras que a mim entristecem profundamente,
Soubesses tu das bestas que vagam, vorazes, em meus pensamentos
Repousarias ainda tuas delicadas mãos sobre as minhas?
Repousarias teus doces sonhos ainda sobre meu coração?
Pois tu, que és a luz que pela janela adentra,
Florescendo dentro de mim, a crescer,
Como a mais bela flor que do orvalho se cobre,
Tu és o que há de mais iluminado sobre mim,
E partido seria meu coração se à tua nobre luz minhas sombras cobrissem.
Que seria de meus jardins, sem teu sol para animá-los?
Que seria de meus sorrisos, sem ti para encantá-los?
Tortuosa é a estrada, meu cavalheiro, que à frente se mostra
E meu coração, dividido em pedaços, é trôpego e hesita,
Pois meus sonhos voaram para longe, enquanto meus pés se fincam ao chão
Mais e mais eu me afundo,
Mais e mais eles se afastam,
Tortuosa é a estrada, meu cavalheiro!
Mas se tenho a ti ao meu lado, o caminho é florido,
Há cores, há brisa fresca, há pássaros em sinfonia!
Como podes, meu nobre, com um simples gesto de tuas mãos
Ser capaz de avivar em mim o que já não mais respirava?
Como me consome o medo!
Como me preocupa a dor!
A rosa que te ofereço pode tua delicada pele ferir,
E como viveria eu com a culpa?
Mesmo que minha vontade desconheça este caminho,
Como me amedronto, amor meu!
Pois a teu semblante desejo atribuir apenas a suavidade do teu amor,
Que dia e noite me acorda gentilmente
E em meus sonhos me guarda tão bem.
É para ti que são meus sonhos!
Como posso ainda me torturar ao olhar para trás,
Se ao meu lado existe o que há de mais gracioso?
Como posso ainda recuar diante do amanhã
Se o que há hoje me recobre de luz, me alimenta a alma?
Pois foi quando dançaram nossos corpos,
Quando meu coração gritava teu nome em amor,
Quando as mãos se uniram e as almas se abraçaram
Foi neste momento que pude ver, tão claro quanto a luz de teus olhos:
O caminho que houver de ser, para onde se desenrolarem as histórias,
Será de todos o mais lindo se meus olhos encontram os teus.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Carta ao louco

"Vejo que tem melhorado. É realmente ótimo vê-lo em estado tão bom, com tanto brilho nos olhos. Fico imensamente feliz que esteja deixando os vícios, que consiga pouco a pouco se livrar dessas substâncias. Vê-lo sair desse cubículo abafado é imensamente gratificante, pois sei que o tratamento tem sido efetivo. Você sabe, eu tenho o estudado por muito tempo. Durante algum tempo, antes de atendê-lo, eu o observei, você sempre foi aquele que mais me chamou a atenção. Entre todos, você parecia o mais inquieto, o mais impetuoso. Seus impulsos, suas vontades, seus instintos... Como poderia eu sequer entender o que você estava fazendo ali? Santo Deus, o que fizeram!? Os outros nem sequer podem ser comparados a você -e no entanto, ali você estava, no meio deles. Era completamente inadequado. Mesmo em meio a tantos corpos cinzentos, moribundos, sem vida, você sempre esteve radiante. E como poderia eu ignorá-lo? Eu já não atendia mais casos particulares. Já não era de meu feitio atender um a um, escutando pacientemente, refletindo sobre tudo, aquilo me deixava exausto. Eles nunca me escutavam, de qualquer maneira. Eram como rebeldes que simplesmente entravam em meu consultório para tirar as coisas de lugar, danificar meus pertences e me deixar com uma grande dor de cabeça no final do dia. Acho que no fundo, eu que nunca soube lidar com isso. Então, eu só ficava ali, observando de longe, pronto para dar assistência quando a primeira emergência surgisse. Mas você, era inexplicavelmente fascinante como meus olhos nunca poderiam sair de sua direção. Eu já nem mesmo cumpria minha função direito. Pedi que lhe trouxessem até mim, então. Eu já tinha observado o suficiente. E era esplêndido, de fato, incrível como você se expressava com tamanho brilhantismo. Seus olhos resplandeciam como estrelas cadentes, a voar aqui e ali. Suas palavras eram como nuvens voláteis em uma ventania repentina. Sua mente, sua alma e seu coração transpareciam através das suas ideias. Tem sido deveras deleitoso assistir você. Pela primeira vez, não me sinto ameaçado em meu próprio consultório, esperando o primeiro surto a qualquer momento, onde eventualmente eu sairia com minha integridade física ameaçada. Pelo contrário, sinto como se atender você refrescasse os dias quentes de um verão, ou aquecessem uma ventania cortante no inverno.  Os chás são sempre mais saborosos e menos amargos em sua companhia. Você é brilhante, porque a sua loucura é diferente. Não -você não é simplesmente louco. O seu diagnóstico, ouso dizer que é preciso e certeiro: você é livre. Livre dos medos, das amarras, do que pensam os outros. Você voa, mergulha, corre e dança como bem quer, com sua própria música, no seu próprio tempo. Como puderam eles te prender? Sinto muito que houve tanta negligência anteriormente, mas, meu caro paciente, o seu tratamento deve ser um só: a liberdade. Sim, a liberdade, pois não é o veneno da cobra também a base do antídoto? Esse mundo é completamente seu, e você não merece menos. Mas antes, meu caro, eu tenho algo também a lhe acrescentar. Ao lhe observar, tenho percebido também que, como você mesmo havia pontuado, todos temos, leve ou gravemente, certo grau de loucura. Você conferiu a mim uma liberdade que nunca antes eu pude sequer saber da existência. Me apresentou a impressões que jamais eu sequer pude sonhar ter. Mas, meu caro, sendo a liberdade um diagnóstico, temo que não se descobriu ainda a cura. O tratamento há de ser diário, e a alta nunca vai acontecer. Pois bem, o questiono... Esse consultório de nada mais me serve se sou tão louco quanto a quem atendo, e, assim sendo, se importaria de somar sua liberdade com a minha -melhor dizendo- se importaria de dividirmos nossas loucuras e todos os dias ser livre junto a mim?
Sinceramente,
o Doutor."