quinta-feira, 30 de abril de 2015

Réquiem para mais um dia

   De dia, por algum milagre, ainda consegui manter-me de pé, embora fraquejasse na maior parte do tempo. Pela janela as lágrimas do céu escorriam, e eu não podia deixar de sentir compaixão pelas gotas que, depois de algo que parecia uma queda livre, batiam bruscamente contra o vidro, escorrendo pela janela até desmancharem-se no chão. Pela tarde, meus joelhos cansados doíam e minha sanidade mental parecia chacoalhar-se, querendo fugir de seus eixos. Uma nova olhada à janela, e desta vez ela refletia a janela que havia em minha própria mente. Através do vidro manchado pelas marcas de mãos que se rastejaram até ali e decaíam por toda a extensão da janela, pude enxergar alguma coisa em mim mesmo. Uma tristeza profunda, uma angústia perdidas em uma enorme bagunça, soterradas pelos arrependimentos e sufocadas pelos medos. Onde estaria a esperança, no meio dos destroços causados pela última tempestade? Onde estariam as boas memórias? Ri para mim, eu só podia estar louco. Talvez um pouco de distração me fizesse bem. Talvez olhando pra frente eu esquecesse o que eu guardo em mim. Mas a noite, a escura noite chegou insidiosa, e meus joelhos fracos não aguentaram seu empurrão. Caí ao chão -eu já não possuía mais forças para seguir de pé ou ainda procurar qualquer resposta. Decidi que ali ficaria. Minhas veias choravam mais que meus olhos, minha visão rodava e tornava-se turva. Sentia a fria solidão fluir pelo meu corpo, cortando e arrancando cada pedaço de meu conforto. O medo já me segurava com força pelas mãos para que eu não escapasse, e o cheiro de morte em seus dedos tornava-me ainda mais fraco. Caído ao chão, apunhalado por minha própria ilusão, eu já havia desistido de retomar qualquer pequeno controle sobre a minha vida ou sobre aquela situação. Aquele chão ensanguentado, frio e duro agora era onde eu passaria o resto de minha noite, em uma triste agonia solitária. Só. Meus olhos já secavam e em minha visão nada era nítido. O "estar distante" pisava em meu corpo e ria. Talvez fosse esse o meu fim. Talvez fosse esse o fim de tudo. Só, preso na fria armadilha que eu mesmo criei, sem força alguma para lutar contra o meu pior inimigo. A minha própria mente.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Notas de sangue

O brilho da navalha encarava minha estúpida carne com frieza. Ria para si, e dizia, irritante e repetidamente, "chegue perto, é a mim que você quer, não é?". Insinuava-se com seu maldito sorriso. O coração debatia-se em desespero, como se quisesse escapar daquele horror causado pela negra angústia que se acumulava friamente em meu estômago e parecia querer escapar pela garganta como a vomitar minha própria existência para longe, e vê-la sumir no esgoto mais sujo que eu pudesse encontrar vagando pelas escuras e inóspitas ruas. Três socos. Três rudes socos que minhas mãos, que naquele momento pareciam ter minha consciência mais sensata, desferiram em meu rosto. O sangue e as lágrimas pareciam correr para longe de mim, como alguém que foge daquilo a que tem asco. É como se estar no próprio chão, sujo e úmido, fosse mais agradável que estar dentro de mim, sentindo o cheiro podre de humano que exala de todas as minhas escolhas equivocadas. Talvez nem eu mesmo quisesse senti-lo, e por isso, a voz, cada vez mais alta, aos risos e gritos, se inquietava na curiosidade de ver a fria lâmina de uma tesoura atravessando meus tecidos. Cortar o mal pela raiz. E o céu parecia cada vez mais distante. Encoberto de nuvens. E, aos poucos, meu sonho de voar esvaecia. Trôpego e ingênuo, morria lentamente em meus braços.

"Caro céu,
    a fria distância entre meu sonho de alcançá-lo e a terra, que meu egoísmo foi capaz de aumentar, corta minha pele com precisão e indiferença. Espero que, ao ver minha própria existência esvaecer-se assim, eu possa alcançar-te com mais facilidade. Espero que não esteja chovendo como eu estou. As nuvens escuras cobrindo tuas cores me fazem triste."

domingo, 5 de abril de 2015

O Céu

    As cidades e as estrelas se repetiam enquanto eu buscava nas variações de cores e nuvens daquele céu que levava consigo a luz do dia mais uma vez qualquer fragmento de mim que me pusesse a dormir com uma melodia suave, me fazendo esquecer as feridas que o tédio dos outros havia aberto em mim. As pequenas ondas que chegavam à beira da praia e recuavam poucos centímetros antes de meus pés serem capazes de tocá-las pareciam querer me convidar para qualquer conversação interna. As pequenas ondas, que como minhas palavras partiam do imenso mar de ideias mas nunca tinham a coragem para chegar aos pés de quem estava ali, diante delas. E lá você estava, parado. Meus pés fincados na areia úmida não poderiam se mexer para seguir as ondas, e menos ainda poderiam chegar até você. E de alguma forma peculiar você se enquadrava perfeitamente naquele lugar. O céu escuro, riscado de pequenas listras avermelhadas, as luzes nas ruas, as estrelas que mesmo sem saber você tentava imitar, o imenso mar. E você, parado. Minha pulsação acelerada e minha cabeça pesada te observavam com atenção. Eu não poderia me aproximar -não enquanto você era o centro daquela pintura etérea, posta somente para que meus olhos cansados pudessem observar. Meus pés nunca poderiam chegar até você: eles tremiam na mínima ideia de interferir naquele cenário surreal. Minhas palavras nunca o alcançariam, elas quebravam antes mesmo de voarem até você. E você ali, parado. Você é incrivelmente bonito. Não só pela delicadeza de seus traços ou pela assimetria perfeita e serena de seu rosto, mas pela forma como você e o céu, naquele momento eram um só para mim. Diante de mim, ali, parados. Como poderia tocar o céu? Como faria para que minhas palavras pudessem o alcançar, aqui de baixo? Talvez na silenciosa contemplação de suas matizes coloridas e misteriosas você enxergasse bem através dos meus olhos curiosos as palavras que, desesperadas, debatem-se por uma liberdade inalcançável. Talvez, se eu olhasse uma vez mais no fundo de sua alma, você pudesse enxergar as palavras impronunciáveis que, depois de se despirem de todo o peso de meus pensamentos viajantes dos infinitos corredores de meu particular, tentam caber, sem sucesso, em um simples "eu te amo".