sábado, 8 de novembro de 2014

He(art)

Um raio, um clarão repentino,
A certeza que se erguia ao piscar de meus olhos,
O destino que veio até mim sorrindo,
A mão que me salva dos meus feitos inglórios,
Por entre a noite, o primeiro raio matutino,
Em meio à confusão, o abrigo sóbrio.

Olhos escuros como a noite mansa,
Olhar manso que ao meu se lança,
Mares profundos nos quais mergulha meu sonhar,
Véu suave que revela o luar,
Honesto mistério que me absorve, me abraça,
O breu que ao verdejar se enlaça.

Tua calmaria,
A atenuar minhas sombras,
Tua melodia,
A saltar de tuas palavras,
A luz do dia
Que de teu peito ilumina,
Que me revela o caminho
Que se junta à minha sina,
Agora sigo, não mais sozinho.

A alma que solta voa, dança,
Gira e se abraça à tua,
O perfume que ao ar se lança,
O coração que não mais recua,
O medo, agora uma lembrança,
O voar, poder alcançar a lua
Que em teus olhos brilha em confiança.

O vento que me leva distante
Varre as folhas secas do chão,
O riso fácil, radiante,
O ecoar constante do coração,
E em meus olhos fechados
Posso ver a luz ao meu lado.

domingo, 2 de novembro de 2014

Esquece-me ou devoro-te VI

    Quando despertei, já não havia mais nenhum vestígio do que havia anteriormente acontecido ali. Aliás, não sei se posso dizer se estava no mesmo ali de antes. A sala parecia um pouco menor, e, depois de uma certa dificuldade em abrir os olhos, notei, com a visão ainda embaçada, que as paredes estavam brancas. Aquele branco me devorava, me irritava profundamente. Ele sabia disso -sim, eu sei que ele, da voz, era o responsável por tudo isso. Com um pouco de esforço e os olhos ainda doloridos e entreabertos, levantei-me e notei que havia apenas uma saída. Me aproximei lentamente e olhei um pouco, parecia um corredor infinito, um branco que não se esgotava. Antes que pudesse hesitar, imediatamente me veio ao pensamento o que a voz tinha dito a respeito disso, e sem outra escolha decidi atravessar aquele corredor sufocante. As paredes tinham um pouco mais além da largura de meus ombros, o que tornava um pouco angustiante andar por ali. Mas segui. Minha cabeça nesse momento não podia mais processar nenhuma informação, e minha única vontade, se é que posso chamar de vontade o que mais parecia um instinto era chegar ao final daquele corredor e, quem sabe, apunhalar de uma vez por todas aquele que foi o causador de meus pesadelos. Alguns passos depois, notei que havia no chão uma adaga. Parei por alguns instantes, ri para mim mesmo, incessavelmente. - É isso que queres? É isso que terás! - gritei, sem obter resposta. Minha expressão se alterou então, um semblante sério tomava conta de mim. Abaixei-me e guardei a adaga em um dos meus bolsos. Continuei a minha caminhada por longos minutos. Não sei dizer exatamente se o tempo passava ou permanecia ileso, se eu caminhava ou permanecia no mesmo lugar, mas nada parecia se alterar. Em intervalos alternados eu tentava correr, sem resultados. Aquilo nunca parecia chegar ao fim. Apesar disso, não me abalei. Já não tinha mais a mesma paciência de antes para questionar ou me irritar com o que acontecia. Eu apenas precisava sair dali. Milhares de passos dados, caí de joelhos ao chão, já havia me esgotado. E eis que ecoa de algum lugar aquela já conhecida voz.
  -Teu medo é não encontrar o fim? Ora, nada tenho com isso, esse corredor em que estás tu mesmo criastes. Não vês como as paredes brancas não se parecem em nada com as minhas paredes negras?- e ria-se ruidosamente -mas se queres mesmo sair daqui, antes do fim, precisas presenciar o fim, só assim saberás valorizar teus passos.
Eu não entendi muito bem o que aquelas palavras queriam dizer, mas antes que eu pudesse pensar, tudo tornou-se um breu absoluto e eu já não sentia meus pés tocarem o chão. Senti algo desconfortável em meu organismo -um aceleramento súbito de meu metabolismo, talvez. Olhei para minhas mãos e elas se enrugavam rapidamente. Meu desespero crescia quando eu percebi que eu já não tinha mais o corpo jovem de antes, me sentia fraco. Eu estava no fim. Quando caí ao chão, a última coisa que pude ver foram mariposas, centenas delas se aproximando, me cercando. Elas tomaram conta de meu corpo e eu sentia como se elas me devorassem, mas eu não podia me mover. Quando meus olhos se fecharam, senti meu corpo se erguer novamente com uma força que não era minha. Já de pé, notei que borboletas de todas as cores se desprendiam de mim e voavam pelo infinito breu, sumindo na distância. Olhei para minhas mãos, estavam lisas novamente. Era como se eu recuperasse a minha jovialidade. Olhando para a frente pude perceber uma porta a alguns passos de distância. Me aproximei. Dei uma última olhada para trás -tudo era breu. Atravessei a porta e estava em uma outra sala negra. No fundo da sala, que era um pouco maior que as outras, havia um espelho comprido, um pouco maior que eu. Dei lentos passos em sua direção, até que ouvi aquele riso de antes, mas desta vez ele estava bem atrás de mim, eu podia sentir. Virei-me, e notei que atrás de mim havia uma forma humana, totalmente escurecida. Possuía asas perceptivelmente deformadas e uma coroa repousava em sua cabeça e de seus dedos garras afiadas se projetavam. Sua presença era acompanhada de uma aura negra e eu não podia negar que estava assustado diante daquela forma. Seu riso deforme, dessa vez mais perto de mim do que qualquer outra vez, encheu aquele ambiente.
  -Vai em frente! Eu sei o que queres! Eu sei o que trazes contigo! Vai! Crava a adaga em meu peito!
Seu riso me irritava profundamente. Me preparei para golpeá-lo, mas antes que eu tirasse a adaga do bolso pude notar um riso que se erguia mais e mais de sua face sem traços. Sutilmente, retornei a adaga ao seu lugar e com o outro braço retirei a coroa de sua cabeça. Seu riso se desfez assim como a coroa que tornou-se vapor em minha mão. Sua expressão agora era algo que se aproximava de uma ira. Suas asas ergueram-se e eu tremi. Não havia tempo para pensar, então tornei a correr em direção ao espelho, enquanto aquela sombra permanecia parada, com suas asas erguidas e seu riso que tornava-se cada vez mais grave e temeroso. Parei de frente ao espelho e meu sangue esfriou ao ver que ele refletia não a minha imagem, mas uma sombra com asas, sem expressão e com uma coroa em sua cabeça. O desespero tomou conta de mim quando ouvi ao meu lado aquela voz novamente
  -Entendes agora, torpe homem? Sou parte de ti, és parte de mim. Tu me criaste e eu decidi tornar-me o teu pior pesadelo. Vai! Crava em meu peito a adaga! Tens coragem de ver o que pode acontecer contigo?
Eu não sei que tipo de sentimento tomava conta de mim agora, mas eu não tinha mais medo algum. Encarei a maldita sombra de frente, e ri. Ri como nunca havia antes rido em minha vida. Tirei do bolso a adaga e observei seu semblante sorrir lentamente.
  -Sei bem o que queres, maldito! Não terás de mim o que queres!
Cravei a adaga no espelho. Sua expressão se desfez e pude observar o doce pânico que agora sua face transparecia. Com o cabo da adaga, golpeei repetidamente o espelho, e pelos buracos do estilhaço, feixes de luz brilhavam. Pouco a pouco, a luz tomava conta daquele ambiente e a sombra, debatendo-se, desaparecia lentamente. Eu podia respirar aliviado agora. A luz tomava conta de meus olhos e tudo tornou-se um imenso branco.
Despertei mais uma vez.
Estava em minha cama, no meu quarto. Eu estava livre, finalmente. Sentia que minha vida recomeçava ali.