sexta-feira, 18 de julho de 2014

Esquece-me ou devoro-te V

    Assim que eu entrei pela porta, notei um estranho silêncio e um clima que de certa forma chegava a ser aconchegante. Dei mais alguns passos e sentei-me no canto, sentia-me bem porque de todo o inferno que havia passado, aquele era o único salão onde o conforto era real. Alguns minutos de calmaria -o suficiente para que eu repusesse-me- fizeram com que eu sentisse alguma sonolência. Enquanto meus olhos fechavam-se lentamente, notei uma sombra se aproximando gentilmente de mim e acariciando com suas macias mãos meu rosto. Eu não poderia explicar o porquê, mas aquele gesto causava-me certa atração. Levantei-me, e com os olhos ainda pesados, segurei a sombra pela mão e deixei que me conduzisse. Um estranho sentimento de felicidade agora invadia-me a mente, enquanto outras sombras surgiam das paredes e tratavam-me igualmente com cuidado. O sono misturado ao deleite fazia meus pés flutuarem enquanto as mãos aquecidas percorriam meu corpo. Foi só então, quando eu quase entrava em profundos sonhos, que as mãos até então macias tornavam-se rígidas, as leves carícias tornavam-se doloridos arranhões, o calor aconchegante tornava-se o frio que quebrava a quietude da alma. Tão de repente como uma chuva que cai no verão as situações foram invertidas, e agora, caído ao chão, assustado e sem entender o que acontecia, via-me sendo chutado, cuspido, algumas andavam por cima de mim como se minha existência não fosse de qualquer notoriedade, outras empurravam-me, como se meu corpo fosse um imenso estorvo na frente de seus objetivos. Pouco a pouco o salão ficava mais e mais frio, até que, encolhido ao meu máximo, eu sentisse minha pele ressecar-se, congelar. Enquanto isso as sombras seguiam correndo, saltando, riam-se e pareciam agora buscar qualquer objetivo que não fosse notar minha presença ali. Depois de longos e torturantes instantes, diminuíam de velocidade e o frio de intensidade. Juntaram-se, e, diante de mim, encaravam-me com certo olhar de pena, talvez superioridade. Naquele momento, a voz que até então misteriosamente havia ausentado-se volta, para meu desespero.
   -Covarde! Deixaste realmente que te levassem, que te abusassem sem ao menos saber onde estavas indo? Tolo! O chão é teu lugar! Permanece onde caíste, nunca serás digno de nada além de pena, infeliz!
   
Aquela voz dessa vez fazia crescer dentro de mim qualquer coisa parecida com ódio -senão o próprio- e, nauseado, levantei-me cambaleante. Aquelas palavras me enojavam e meu estômago cada vez mais embrulhava-se com o ríspido tom do discurso. Caí novamente de joelhos, e senti passar pelo meu corpo toda a angústia presa em mim. Jorrava de minha boca o medo que eu agora tentava eliminar, enquanto sentia pequenos fragmentos de uma profunda tristeza cortando minha garganta. O gosto do sangue misturava-se ao salgado sabor das lágrimas, e, enfraquecido, meu corpo febril caía ao chão, desacordado. A última coisa de que me lembro era ouvir a maldita voz dizendo-me algo, vagamente:
   -...tua jornada por aqui em breve terminará e voltarás ao que é real... mas, antes, devorar-te-ei em teus próprios anseios. Covarde! [...]

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