sexta-feira, 27 de junho de 2014

Esquece-me ou devoro-te IV

    Meus olhos abriam-se pesadamente, como alguém que empurra com grande dificuldade um pesado portão de ferro para que então a luz possa invadir o lado de dentro. Causou-me certo estranhamento perceber que eu não estava mais encostado à parede, mas sim no centro do que parecia outra sala - ora, mas se todas as salas são igualmente negras, como podes diferenciá-las entre si? - perguntaria-me uma mente mais lógica. Pois bem, digo que além das dimensões diferentes e dos distintos posicionamentos das entradas havia ainda uma certa vibração - cada cômodo daquela estranha mansão havia um sentido próprio, uma atmosfera que diferenciava uma da outra, e a presente sala me causava certa atração, algo instigava-me profundamente. Com certo esforço levantei-me - minha força ainda não havia sido completamente recobrada - e, ao levantar-me, percebi que além de estar em outra posição, minhas vestes haviam sido igualmente substituídas por um elegante conjunto de terno, colete, camisa, calça e sapatos. Uma certa luz interna então irradiou minha mente de forma que me causou o esquecimento de qualquer evento passado (a este ponto, por consequência, eu já estava com o meu corpo igualmente recuperado). Percebi então que este cômodo ia além das triviais diferenças já citadas: nos cantos das paredes havia uma leve incidência de uma luz azul, não forte o suficiente para ser percebida pelos olhos mais desatentos. A sensação de não estar sozinho, que já fazia-se presente em todos os outros momentos, desta vez era um pouco mais peculiar. Foi então que, tendo isso percebido, notei que do centro de uma das paredes uma forma levemente iluminada por uma escassa luz azul escurecida andava em minha direção a passos lentos. Aos poucos a forma revelava-se, como se aquela luz de origem desconhecida ficasse mais nítida de acordo com a aproximação. Ficando a pouco menos de um metro de mim, pude perceber que a forma tratava-se de um homem, tão bem trajado quanto eu inexplicavelmente estava, que agora parecia estático e tinha seu rosto ainda coberto pelas sombras. Andei um pouco, e lentamente, ao seu redor, tentando decifrar seu semblante. Após aproximadamente dez passos dados, ele virou-se de frente a mim, aproximou-se mais rapidamente e tirou da algibeira uma rosa vermelha, sentiu seu perfume e jogou-a em minha direção, puxando então meus braços. Uma sensação de pânico tomava conta de mim por dentro - eu não imaginava o que poderia ali acontecer. Com um dos braços estendido na diagonal ele segurava meu braço e encaixava seus dedos entre os meus. O outro braço abraçou-se à minha cintura, e eu, sem entender o que ocorria, fiz o mesmo por lembrar-me do que a voz - maldita voz! - disse-me sobre hesitar. De certa forma, nossos corpos pareciam encaixar-se perfeitamente e o vapor quente de sua serena respiração causava-me encanto. Em seu rosto, ainda oculto pelas sombras, apenas era possível enxergar o fundo de seus olhos. Seu olhar era profundo, firme, e fitava minha alma como quem devora uma tela de Dalí. Naquele momento senti qualquer racionalidade evaporar-se de mim, meu rosto existia apenas para aquele olhar. Após alguns minutos de pura contemplação e mesmerização por minha parte, meu corpo involuntariamente entregava-se à dança enquanto o desconhecido cavalheiro conduzia-me. Naquele momento - não posso definir com exatidão se provinha de meus devaneios ou do próprio ambiente - pude ouvir um suave violino ecoando. Os passos eram lentos e cautelosos, girávamos incansavelmente nos limites daquele cômodo. Percebi uma breve pausa tanto na dança quanto na melodia. Pude ouvir sua respiração por algumas vezes, o tom sereno agora parecia mais agitado. Foi então que uma outra música começou, dessa vez em ritmo frenético - algo como um tango - e os passos aceleravam-se de maneira igualmente frenética. Meu ritmo cardíaco era coordenado pelo violino assim como eu era coordenado por aquele ser singular. Uma outra música podia ser ouvida em cima da que já fazia-se presente, porém com um tom mais agressivo, mais ríspido, ainda que seduzisse-me cada vez mais. Senti-me totalmente entregue às vontades daquela melodia e meus pensamentos giravam em sentido oposto ao que meu corpo girava desenfreadamente naquela fervorosa dança. De repente, risos. Meu parceiro de dança ria-se em um riso profundo e assustador. Seus traços mudaram - já não era o mesmo, ainda que estivesse recoberto por sombras. Minha expressão de medo consolidou-se ao perceber que eu já não tinha controle algum de meu corpo. Assustado, tentei em vão olhar novamente para aquele profundo olhar de antes - em vão porque já não havia clareza que me permitisse tal feito. Tudo era sombra, e um ar frio começava a espalhar-se ao meu redor. Terminando bruscamente a música, fui atirado ao chão e ali fiquei enquanto ouvi aquele riso adentrar minha cabeça, perturbando-me cada vez mais alto. Pouco tempo depois, afastou-se e eu já notava novamente minha solidão. Levantei-me e segui pela próxima entrada, questionando-me acerca de quem era a temerosa (e instigante) sombra.

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